Embodying the Landscape
um território ameaçado
Rosa Nunes é arqueóloga. Habituou-se, com essa experiência, ao olhar dirigido ao fragmento que deve ser inquirido, na busca do sentido. A sua obra fotográfica toma, por
isso, esse vestígio (pode-se-lhe chamar instante, se preferirmos) como mote para, a partir dele, se colocar questões.
Nesta nova exposição temporária no MAEDS, Rosa Nunes dirige a sua atenção para o corpo feminino. Território disputado, legislado como nenhum outro, policiado como nenhum outro, tem custado a ser reclamado como entidade e lugar com autoridade própria. Alienado do poder, contestado na sua voz individual, o corpo feminino continua a ser visto como objectificado.
Os 20 registos que Rosa Nunes apresenta oscilam entre a fotografia da superfície do corpo (conjugando-a com o seu duplo num espelho indefinível) e um espreitar científico para dentro do mesmo. Em todos os registos domina a sombra, num jogo plástico em que o gesto se torna paisagem e em que estas paisagens concretas devêm imagens abstractas.
O conjunto é suficientemente decifrável para podermos reconhecer a linguagem do desejo cruzada com a invasiva expressão do medo. Um registo sacrificial alia-se a imagens que sugerem desolação e que avançam para a inclusão de imagens ilegíveis, de raios x ou de ecografias. Nessa parte indecifrável, o corpo, território de águas turvas, surge representado como um panorama devassado, que sugere o efeito da violência e da desolação. Que sentido encontramos em cada fragmento? Que sentido buscar neste conjunto? Sem mais pistas além da escuridão que envolve os corpos, estas são imagens que, acima de tudo, lançam perguntas inquietantes a quem com elas se confronta.
Emília Ferreira
(Museu Nacional de Arte Contemporânea)
paisagens do corpo
O confinamento a que a pandemia viral nos forçou na Primavera perdida de 2020 teve como reverso a alteração da relação do eu com a sua realidade física. Conduziu-nos à corporização da paisagem quotidiana nesses dias de reclusão.
Era preciso salvar o corpo, como única coisa palpável, sem deixar de descer ao infinitamente pequeno, onde a ameaça residia e as guardas tinham de ser prontamente rendidas. Aí se esfumava a histórica associação do corpo ao sexo, ao género, às correlativas crenças cosmológicas… Aí poderia ter começado uma outra história de redenção. Nunca saberemos se tal terá acontecido, porque as transformações são lentas e imprevisíveis.
O corpo assume-se como a principal arena de criação identitária. Todas as outras categorias, que tendem a classificar, a ordenar, a fixar o nosso quotidiano, estão historicamente confinadas; desvanecem-se quando o olhar mergulha nas paisagens indecifráveis da célula, do tecido, muito antes do aparecimento de uma reconhecível forma. Aí todos somos iguais, a ordem dos factores não interferindo nos resultados finais. Aí podemos resgatar as paisagens primordiais…
…E começar tudo de novo, a partir das estrelas e do sonho, banhados pela luz sideral de uma liberdade conquistada a pulso, corpo a corpo.
O que sucede quando se desafia a lógica tradicional?
Joaquina Soares
(Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal)