Dias Felizes
Ironia
O plano geral da intervenção artística “Dias Felizes” começou a desenrolar-se a partir da contestação da ideia de redenção da Humanidade pelo sacrifício, que gravada a fogo pela moral cristã assume no nosso imaginário colectivo a forma de crucifixo. Rosa Nunes decidiu desde a primeira fase, que o seu Cristo seria do género feminino, muito embora nunca tal tenha estado previsto nos livros sagrados do Antigo ou Novo Testamentos. Posteriormente, viria a destruir o invólucro em que se aninhava a ideia primordial e a dor ficou pairando na atmosfera da sua instalação.
Os registos que constituem a presente instalação (fotografias da série cicatrizes e objectos fotográficos) definem uma arquitectura alegórica e dialéctica, atravessada por forte tensão destruidora, despojada de “sentimentalismos”. À sua volta, desenvolve-se pela circularidade interna do projecto, uma envolvente de terra de ninguém, desprovida de “rugosidades”, plana e incolor, inodora, insípida, inútil e vazia, mas obstaculizadora de uma excessiva aproximação. Essa área de protecção obriga a um afastamento do observador, e a uma visão de conjunto, mas não impede que os olhos tropecem na dureza dos fragmentos de arestas vivas em que a árvore da vida foi retalhada, e nesse corpo abatido em morte sacrificial, disperso pelo chão, jaz em si transmutado o corpo feminino na plena juventude, na firmeza perfeita dos seus volumes, na helenística proporção do rosto, da nuca, do tronco, enfim na sensualidade luxuriante dos poros. Imposta a contemplação melancólica, a instalação fotográfica atinge o observador com a compaixão pelo sofrimento do outro e nosso, que são uma e a mesma coisa... E a ideia de futuro inquieta-nos, ao testemunharmos uma morte violenta e inútil, e começa a fazer sentido a impossivelmente romântica Sonata ao Luar de Beethoven, como se alguém chorasse ao carregar o seu próprio féretro, ou assistisse amordaçado ao colapso do seu mundo.
Através do vídeo, uma necessariamente diferente abordagem da imagem criativa, a autora escolhe uma narrativa visual mais descritiva e pedagógica, apontando claramente para a extrema desigualdade social, ou mesmo para a bipolarização em que a aparente homogeneidade da sociedade global se resolve. E como diria o poeta Nicolás Guillén, entre a anorexia da abundância e a privação da miséria, não deixes que te iludam! Não claudiques, baixando os braços, a luta de classes desenha o caminho da revolução.
No título, pedra de fecho da abóbada do edifício desconstruído por Rosa Nunes, reside o impulso para a acção. A sua profunda ironia constitui uma poderosa arma ao serviço da transformação social. As árvores devem morrer de pé e os seres humanos, no esplendor da sabedoria.
Joaquina Soares • Directora do MAEDS e Professora de Arqueologia Pré-histórica da Universidade Nova de Lisboa • Março de 2012
Os registos que constituem a presente instalação (fotografias da série cicatrizes e objectos fotográficos) definem uma arquitectura alegórica e dialéctica, atravessada por forte tensão destruidora, despojada de “sentimentalismos”. À sua volta, desenvolve-se pela circularidade interna do projecto, uma envolvente de terra de ninguém, desprovida de “rugosidades”, plana e incolor, inodora, insípida, inútil e vazia, mas obstaculizadora de uma excessiva aproximação. Essa área de protecção obriga a um afastamento do observador, e a uma visão de conjunto, mas não impede que os olhos tropecem na dureza dos fragmentos de arestas vivas em que a árvore da vida foi retalhada, e nesse corpo abatido em morte sacrificial, disperso pelo chão, jaz em si transmutado o corpo feminino na plena juventude, na firmeza perfeita dos seus volumes, na helenística proporção do rosto, da nuca, do tronco, enfim na sensualidade luxuriante dos poros. Imposta a contemplação melancólica, a instalação fotográfica atinge o observador com a compaixão pelo sofrimento do outro e nosso, que são uma e a mesma coisa... E a ideia de futuro inquieta-nos, ao testemunharmos uma morte violenta e inútil, e começa a fazer sentido a impossivelmente romântica Sonata ao Luar de Beethoven, como se alguém chorasse ao carregar o seu próprio féretro, ou assistisse amordaçado ao colapso do seu mundo.
Através do vídeo, uma necessariamente diferente abordagem da imagem criativa, a autora escolhe uma narrativa visual mais descritiva e pedagógica, apontando claramente para a extrema desigualdade social, ou mesmo para a bipolarização em que a aparente homogeneidade da sociedade global se resolve. E como diria o poeta Nicolás Guillén, entre a anorexia da abundância e a privação da miséria, não deixes que te iludam! Não claudiques, baixando os braços, a luta de classes desenha o caminho da revolução.
No título, pedra de fecho da abóbada do edifício desconstruído por Rosa Nunes, reside o impulso para a acção. A sua profunda ironia constitui uma poderosa arma ao serviço da transformação social. As árvores devem morrer de pé e os seres humanos, no esplendor da sabedoria.
Joaquina Soares • Directora do MAEDS e Professora de Arqueologia Pré-histórica da Universidade Nova de Lisboa • Março de 2012