Uma luz que espreita entre as fímbrias dos horrores proselitistas
Um dos catorze painéis constitutivos do antigo retábulo-mor da igreja do convento de Jesus de Setúbal, Os Santos Mártires de Marrocos, obra do pintor régio Jorge Afonso, serve de mote e pretexto para esta belíssima exposição de Rosa Nunes na Casa da Avenida.
Organizada numa sequência de trabalhos de fotografia, instalação e vídeo dotados de grande força discursiva, a artista sugere-nos, em doses brutais de confrontos imagéticos e possibilidades de catarse, vários instrumentos de reflexão em torno dos temas da intolerância, do fanatismo e dos preconceitos de todo o tipo. As figuras descarnadas, as chagas abertas, os cutelos de degola empunhados pelos carrascos, a aceitação sacrificial face à brutalidade dos mouros, os olhares de esperança na terra prometida, a bravura e as misérias que se revelam e o teatro de horrores que se desenha no painel escolhido do retábulo quinhentista, juntam-se aos testemunhos domésticos de uma refeição incómoda, entre pratos vazios, toalhas e guardanapos, luzes e sombras. São códigos que dialogam e se imiscuem entre si, com ironia, mordacidade, deixando marca de um profundo desconforto, na crueza das imagens cotejáveis que se desdobram diante nos nossos olhares.
Eis que uma espécie de luz espreita entre as fímbrias dos horrores proselitistas de uma História sempre repetida de intolerâncias e sectarismo. A exposição interroga-nos sobre a nossa capacidade de repulsa. A artista empreende um discurso em que vitupera coisas como a indiferença, a aceitação, a desmemória e o esquecimento e em que a sua visão estética reforça essa desgostosa confirmação de que os destinos sacrificiais e os testemunhos do fanatismo que conduz a toda a sorte de martirológios são cabal atestado da nossa fragilidade de humanos face à insânia terrorista, ao absurdo da violência imposta ou buscada.
Temas como a guerra justa ou a morte salvífica são recorrentes em todas as épocas da História dos homens. A sua representação nas artes, sendo constante (veja-se o inflamado pathos de alguma escultura gótica flamejante, ou a militante pintura barroca do tempo da Contra-Reforma, por exemplo), deriva deste imperativo doutrinário, desse desígnio de “comover as almas e levantar os espíritos”, num esforço conducente à evangelização pacífica ou forçada dos gentios.
Assim sucede no temário desta tábua da oficina de Jorge Afonso, por certo destinada a consciencializar as pessoas para a justeza de se dar guerra aos infiéis – isto, por dramática ironia, neste mesmo tempo de Renascimento em que alguns teóricos do Humanismo cristão, como foi o caso de Benito Arias Montano, defendiam precisamente uma postura de tolerância face ao outro, e destacavam como primado das artes o facto de elas serem o maior remédio para os males de que padecia o mundo… Os pintores do século XVI seriam, assim, uma espécie de demiurgos dotados de uma dimensão ecuménica e pacificadora ou, pelo contrário (no caso de Jorge Afonso), meros executantes, por certo muito competentes, de um ideário de violência auto-justificada pelas circunstâncias ideológicas de uma época?
Ora o tema do martírio (que ocorreu no ano de 1220) dos cinco frades menores que o próprio São Francisco de Assis enviara como missionários para terras de Marrocos, assumia com toda a sua força de narrativa brutalizada esse discurso de inflamação dos espíritos e de legitimação da causa expansionista. Sabe-se que este “sacrifício buscado” teve enorme impacto em toda a cristandade e em 1281, por instâncias do Papa Sisto IV, a Igreja entendeu dever canonizar os cinco monges martirizado (que se chamavam Vital, Berardo e Otão, já sacerdotes, sendo Pedro diácono e Acúrsio ainda irmão leigo). O culto dos Mártires de Marrocos terá, a partir de então, incidência crescente no mundo cristão, o que explica que um tema como este, tão ligado ao processo dos Descobrimentos, tivesse a devida representação no retábulo do convento setubalense. Acresce, aliás, que o primeiro confessor da casa, Frei Henrique de Coimbra, era o mesmo que integrara a viagem de Pedro Álvares Cabral em que se descobriu o Brasil, tendo aí rezado a primeira missa. Homem de convicção expansionista e missionária, pois, agradar-lhe-ia por certo este destaque dado ao martirológio dos seus pares observantes da ordem.
Assim sendo, este magno tema merece a uma artista como Rosa Nunes um singular pretexto para investigar nas fímbrias da mais intolerante escuridão as possibilidades de luz que advêm das capacidade do afecto e dos diálogos possíveis. É neste jogo de possibilidades que se concebe e organiza este seu convite para jantarmos com as suas obras. Sendo ela também uma arqueóloga (pertence ao apertado grupo de fundadores do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal), essa capacidade de perceber indícios e de os contextualizar sob um espectro antropológico não podem deixar de ser mais-valias para a sua actividade artística — resultam como capacidades poderosas no discurso expositivo que ora podemos admirar.
Alguém chamou com propriedade ao seu trabalho a ressonância de uma “arqueologia da luz”, e tal é certo neste Convite para Jantar, concebido como releitura crítica de uma obra-prima da nossa pintura do século XVI à luz dos seus discursos plurais de apologia das violências e de exaltação da fé na sua versão mais proselitista.
Nesse sentido também, Rosa Nunes e Jorge Afonso dialogam numa espécie de fala-sem-tempo a propósito das estradas parangonais da violência versus pacificação, da bestialidade versus diálogo aberto,
Vitor Serrão, Historiador de Arte/ Professor da Universidade de Lisboa
Um Outro Cântico Negro
Evoco aqui a poesia irreverente e provocadora de José Régio, mas também, e mais ainda, a pintura da fase negra de Goya e, porque não, a Salomé de Richard Strauss...
Refiro-me ao mundo das sombras onde fazemos a catarse da finitude de tão curta vida, nosso medo maior. Mas estas são as razões ocultas e longínquas de uma verdade mais próxima, sentida e racionalizada por Rosa Nunes, e assim postada na epiderme do nosso quotidiano para evitar distracções.
Convite para jantar é, claro está, uma metáfora. À violência segmentada que nos impõe um atravessamento vagaroso da fronteira entre sanidade e loucura de um tempo longínquo, a artista sobrepõe a voracidade humana contra si própria e contra a natureza, convocando-a para um banquete fictício.
Rosa Nunes parte do painel dos Santos Mártires de Marrocos, integrado no retábulo quinhentista da igreja do convento de Jesus em Setúbal, e da glorificação da morte sacrificial nele encenada, para construir uma inequívoca recusa da violência.
Actores de um teatro de horrores que nos chegam filtrados por séculos de distância, os corpos sacrificados são ressuscitados em sofrimento pela proximidade táctil dos pratos vazios do nosso tempo, pela repulsa da carne fresca; caminhamos lado a lado com A Vegetariana de Han Kang, ofuscados pela mão ainda quente de sensualidade apolínea, que aponta a inutilidade e o absurdo da violência.
No inquietante jantar de Rosa Nunes não subsistem dúvidas quanto à origem do convite: antes, como agora, os poderosos; cada vez mais invisíveis, os poderosos usam algozes fanatizados para perpetrar suas sentenças, e arautos “lunáticos” para a grande convocatória da comunicação dos seus desígnios. Alguém diz não — stop please — no vídeo com que a artista termina esta instalação fotográfica. Nele, uma figura andrógina move-se tentando a impossibilidade da comunicação; a mesma que as personagens silenciosas deste cenário tentam com Deus e com os Homens.
Centrando toda a exposição no convite para jantar, a artista integra, nesta lógica, imagens de outras séries, convocando-as para o grande banquete.
Joaquina Soares
Directora do MAEDS, Investigadora da UNIARQ/Universidade de Lisboa
Convite para Jantar
A Casa da Avenida, em Setúbal, recebe em jeito de semi-retrospectiva a exposição de fotografia, instalação e vídeo de Rosa Nunes intitulada “Convite para Jantar”. Esta reúne, em formato de diálogo, não só alguns dos trabalhos artísticos desenvolvidos ao longo de uma década como também a sua mais recente série fotográfica cujo título dá o nome à exposição. Rosa Nunes integrou, em 1974, a equipa fundadora do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal desempenhando aí, desde então, funções como arqueóloga. A arquelogia, como área de saber, foi durante muito tempo definida como sendo o estudo sistemático dos restos materiais da vida humana já desaparecida. No entanto, o percurso de Rosa Nunes na área da fotografia está pejado de vida, de respiros, de gestos fixados numa arqueologia da luz.
Em “Terra Verde” assistimos a um desenhar escatológico do pinheiro-bravo, árvore esta tão importante na história nacional. O pinhal de Leiria marcou o início da plantação intensiva de monocultura do pinheiro-bravo em território nacional. O pinhal foi inicialmente mandado construir pelo rei D. Afonso III de forma a proteger a cidade de Leiria e os terrenos agrícolas da zona que se ressentiam com o excesso de areias transportadas pelo vento. Será o rei D. Dinis que aumentará a sua dimensão de forma substancial. Mais tarde, a madeira dos pinheiros foi usada para a construção das embarcações no tempo dos Descobrimentos Marítimos. E nos séculos XVIII e XIX o pinheiro vai ser a espécie impulsionadora de diversas indústrias. Faz sentido, portanto, que Rosa Nunes queira em forma de homenagem cristalizar a sua vivência, o seu legado e alertar-nos para a sua actual ausência nas nossas florestas. Florestalmente, o pinheiro-bravo é uma resinosa. As resinas servem para cicatrizar as feridas da planta. A série “Terra Verde” confronta-nos com imagens viscerais, de interiores de pinheiros-bravos em mutação, com imagens de corpos feridos que aguardam pela resina humana para se regenerarem.
O pinheiro-bravo tem floração monóica, ou seja, as flores masculinas e femininas estão reunidas num mesmo pé. Nem sempre a Humanidade tem tratado as questões de género com a mesma equidade com que o pinheiro faz. A série “Chrysallis” leva Rosa Nunes a abordar de forma performática a questão de género. Desenha e materializa através de gesso um vestido/corpete que será objecto exposto/instalado em diversos não-lugares. É um vestido abandonado pelo corpo, pela matéria, pelos despojos do Eu e, principalmente, por todos aqueles que silenciam a dor e o sofrimento gerados pela dicotomia feminino/masculino. Rosa Nunes reúne em imagens reflexivas, um corpo feminino ausente em matéria aguardando de forma firme e bem alicerçada o regresso do Eu libertado.
A alicerçagem das nossas cidades é feita por anónimos. O alicerce é o conjunto de elementos estruturais que sustentam a edificação, transferindo os esforços na estrutura para o solo. Estrutura, suporte, assento, eixo, firmamento. A série “Z=37,48” reflecte sobre o trabalho silencioso daqueles que erguem cidades, países, mundos em autêntico mutismo social. Assim como todos aqueles que fazem o pão que comemos diariamente, ou aqueles que nos transportam de casa para o trabalho e do trabalho para casa nos transportes públicos. Juntos, alicerçam um sistema operacional de forma silenciosa onde apenas as máquinas falam. Apenas ouvimos o ruído dos carris onde os comboios circulam ou o das betoneiras que fabricam o betão. O solo está impregnado de esforço humano silenciado.
“Convite para Jantar” é o mais recente trabalho fotográfico de Rosa Nunes. São imagens que respiram de forma individual, em díptico e em tríptico. A representação de tempos idos - que tem como base de trabalho segmentos do painel dos Santos Mártires de Marrocos integrado no retábulo quinhentista da igreja do Convento de Jesus, em Setúbal - dialoga com os tempos agora vividos. Os seguidores de São Francisco assumiram a tarefa de conversão do Norte de África, onde foram autorizados a fundar os primeiros mosteiros em solo muçulmano. As Cruzadas organizadas à Terra Santa pelos cristãos europeus, entre 1096 e 1270, realçavam a necessidade de prosseguir com a evangelização nos territórios onde imperava a religião de Maomé. Num período de expansão do Cristianismo, estes cinco frades menores assentiram a tortura e confirmaram com sangue a sua fé em Jesus Cristo. Depois de muito padecerem, sem nunca abandonarem o seu propósito de evangelização, acabaram por morrer decapitados. Miramolim, o chefe dos crentes entre os muçulmanos, tomando da sua cimitarra (espada de lâmina curva) cortou-lhes a cabeça pelo meio da testa.
Actos destes continuam a ocorrer em todo o mundo, em díptico, em tríptico. Enquanto enviamos uma mensagem por telemóvel ou enquanto preparamos de forma esmerada a mesa para o jantar. A faca alinhada, o guardanapo imaculado, o corte que se espera. O corte sobre o corte que alguém de forma silenciosa fez no animal que vamos comer. A nossa vivência é sempre acompanhada por realidades paralelas, cortes transversais, eixos tangenciais. Rosa Nunes convida-nos para jantar.
“Nem só de pão viverá o Homem”. (Mateus 4:4)
Cláudia Camacho, Directora da antiframe
Um dos catorze painéis constitutivos do antigo retábulo-mor da igreja do convento de Jesus de Setúbal, Os Santos Mártires de Marrocos, obra do pintor régio Jorge Afonso, serve de mote e pretexto para esta belíssima exposição de Rosa Nunes na Casa da Avenida.
Organizada numa sequência de trabalhos de fotografia, instalação e vídeo dotados de grande força discursiva, a artista sugere-nos, em doses brutais de confrontos imagéticos e possibilidades de catarse, vários instrumentos de reflexão em torno dos temas da intolerância, do fanatismo e dos preconceitos de todo o tipo. As figuras descarnadas, as chagas abertas, os cutelos de degola empunhados pelos carrascos, a aceitação sacrificial face à brutalidade dos mouros, os olhares de esperança na terra prometida, a bravura e as misérias que se revelam e o teatro de horrores que se desenha no painel escolhido do retábulo quinhentista, juntam-se aos testemunhos domésticos de uma refeição incómoda, entre pratos vazios, toalhas e guardanapos, luzes e sombras. São códigos que dialogam e se imiscuem entre si, com ironia, mordacidade, deixando marca de um profundo desconforto, na crueza das imagens cotejáveis que se desdobram diante nos nossos olhares.
Eis que uma espécie de luz espreita entre as fímbrias dos horrores proselitistas de uma História sempre repetida de intolerâncias e sectarismo. A exposição interroga-nos sobre a nossa capacidade de repulsa. A artista empreende um discurso em que vitupera coisas como a indiferença, a aceitação, a desmemória e o esquecimento e em que a sua visão estética reforça essa desgostosa confirmação de que os destinos sacrificiais e os testemunhos do fanatismo que conduz a toda a sorte de martirológios são cabal atestado da nossa fragilidade de humanos face à insânia terrorista, ao absurdo da violência imposta ou buscada.
Temas como a guerra justa ou a morte salvífica são recorrentes em todas as épocas da História dos homens. A sua representação nas artes, sendo constante (veja-se o inflamado pathos de alguma escultura gótica flamejante, ou a militante pintura barroca do tempo da Contra-Reforma, por exemplo), deriva deste imperativo doutrinário, desse desígnio de “comover as almas e levantar os espíritos”, num esforço conducente à evangelização pacífica ou forçada dos gentios.
Assim sucede no temário desta tábua da oficina de Jorge Afonso, por certo destinada a consciencializar as pessoas para a justeza de se dar guerra aos infiéis – isto, por dramática ironia, neste mesmo tempo de Renascimento em que alguns teóricos do Humanismo cristão, como foi o caso de Benito Arias Montano, defendiam precisamente uma postura de tolerância face ao outro, e destacavam como primado das artes o facto de elas serem o maior remédio para os males de que padecia o mundo… Os pintores do século XVI seriam, assim, uma espécie de demiurgos dotados de uma dimensão ecuménica e pacificadora ou, pelo contrário (no caso de Jorge Afonso), meros executantes, por certo muito competentes, de um ideário de violência auto-justificada pelas circunstâncias ideológicas de uma época?
Ora o tema do martírio (que ocorreu no ano de 1220) dos cinco frades menores que o próprio São Francisco de Assis enviara como missionários para terras de Marrocos, assumia com toda a sua força de narrativa brutalizada esse discurso de inflamação dos espíritos e de legitimação da causa expansionista. Sabe-se que este “sacrifício buscado” teve enorme impacto em toda a cristandade e em 1281, por instâncias do Papa Sisto IV, a Igreja entendeu dever canonizar os cinco monges martirizado (que se chamavam Vital, Berardo e Otão, já sacerdotes, sendo Pedro diácono e Acúrsio ainda irmão leigo). O culto dos Mártires de Marrocos terá, a partir de então, incidência crescente no mundo cristão, o que explica que um tema como este, tão ligado ao processo dos Descobrimentos, tivesse a devida representação no retábulo do convento setubalense. Acresce, aliás, que o primeiro confessor da casa, Frei Henrique de Coimbra, era o mesmo que integrara a viagem de Pedro Álvares Cabral em que se descobriu o Brasil, tendo aí rezado a primeira missa. Homem de convicção expansionista e missionária, pois, agradar-lhe-ia por certo este destaque dado ao martirológio dos seus pares observantes da ordem.
Assim sendo, este magno tema merece a uma artista como Rosa Nunes um singular pretexto para investigar nas fímbrias da mais intolerante escuridão as possibilidades de luz que advêm das capacidade do afecto e dos diálogos possíveis. É neste jogo de possibilidades que se concebe e organiza este seu convite para jantarmos com as suas obras. Sendo ela também uma arqueóloga (pertence ao apertado grupo de fundadores do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal), essa capacidade de perceber indícios e de os contextualizar sob um espectro antropológico não podem deixar de ser mais-valias para a sua actividade artística — resultam como capacidades poderosas no discurso expositivo que ora podemos admirar.
Alguém chamou com propriedade ao seu trabalho a ressonância de uma “arqueologia da luz”, e tal é certo neste Convite para Jantar, concebido como releitura crítica de uma obra-prima da nossa pintura do século XVI à luz dos seus discursos plurais de apologia das violências e de exaltação da fé na sua versão mais proselitista.
Nesse sentido também, Rosa Nunes e Jorge Afonso dialogam numa espécie de fala-sem-tempo a propósito das estradas parangonais da violência versus pacificação, da bestialidade versus diálogo aberto,
Vitor Serrão, Historiador de Arte/ Professor da Universidade de Lisboa
Um Outro Cântico Negro
Evoco aqui a poesia irreverente e provocadora de José Régio, mas também, e mais ainda, a pintura da fase negra de Goya e, porque não, a Salomé de Richard Strauss...
Refiro-me ao mundo das sombras onde fazemos a catarse da finitude de tão curta vida, nosso medo maior. Mas estas são as razões ocultas e longínquas de uma verdade mais próxima, sentida e racionalizada por Rosa Nunes, e assim postada na epiderme do nosso quotidiano para evitar distracções.
Convite para jantar é, claro está, uma metáfora. À violência segmentada que nos impõe um atravessamento vagaroso da fronteira entre sanidade e loucura de um tempo longínquo, a artista sobrepõe a voracidade humana contra si própria e contra a natureza, convocando-a para um banquete fictício.
Rosa Nunes parte do painel dos Santos Mártires de Marrocos, integrado no retábulo quinhentista da igreja do convento de Jesus em Setúbal, e da glorificação da morte sacrificial nele encenada, para construir uma inequívoca recusa da violência.
Actores de um teatro de horrores que nos chegam filtrados por séculos de distância, os corpos sacrificados são ressuscitados em sofrimento pela proximidade táctil dos pratos vazios do nosso tempo, pela repulsa da carne fresca; caminhamos lado a lado com A Vegetariana de Han Kang, ofuscados pela mão ainda quente de sensualidade apolínea, que aponta a inutilidade e o absurdo da violência.
No inquietante jantar de Rosa Nunes não subsistem dúvidas quanto à origem do convite: antes, como agora, os poderosos; cada vez mais invisíveis, os poderosos usam algozes fanatizados para perpetrar suas sentenças, e arautos “lunáticos” para a grande convocatória da comunicação dos seus desígnios. Alguém diz não — stop please — no vídeo com que a artista termina esta instalação fotográfica. Nele, uma figura andrógina move-se tentando a impossibilidade da comunicação; a mesma que as personagens silenciosas deste cenário tentam com Deus e com os Homens.
Centrando toda a exposição no convite para jantar, a artista integra, nesta lógica, imagens de outras séries, convocando-as para o grande banquete.
Joaquina Soares
Directora do MAEDS, Investigadora da UNIARQ/Universidade de Lisboa
Convite para Jantar
A Casa da Avenida, em Setúbal, recebe em jeito de semi-retrospectiva a exposição de fotografia, instalação e vídeo de Rosa Nunes intitulada “Convite para Jantar”. Esta reúne, em formato de diálogo, não só alguns dos trabalhos artísticos desenvolvidos ao longo de uma década como também a sua mais recente série fotográfica cujo título dá o nome à exposição. Rosa Nunes integrou, em 1974, a equipa fundadora do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal desempenhando aí, desde então, funções como arqueóloga. A arquelogia, como área de saber, foi durante muito tempo definida como sendo o estudo sistemático dos restos materiais da vida humana já desaparecida. No entanto, o percurso de Rosa Nunes na área da fotografia está pejado de vida, de respiros, de gestos fixados numa arqueologia da luz.
Em “Terra Verde” assistimos a um desenhar escatológico do pinheiro-bravo, árvore esta tão importante na história nacional. O pinhal de Leiria marcou o início da plantação intensiva de monocultura do pinheiro-bravo em território nacional. O pinhal foi inicialmente mandado construir pelo rei D. Afonso III de forma a proteger a cidade de Leiria e os terrenos agrícolas da zona que se ressentiam com o excesso de areias transportadas pelo vento. Será o rei D. Dinis que aumentará a sua dimensão de forma substancial. Mais tarde, a madeira dos pinheiros foi usada para a construção das embarcações no tempo dos Descobrimentos Marítimos. E nos séculos XVIII e XIX o pinheiro vai ser a espécie impulsionadora de diversas indústrias. Faz sentido, portanto, que Rosa Nunes queira em forma de homenagem cristalizar a sua vivência, o seu legado e alertar-nos para a sua actual ausência nas nossas florestas. Florestalmente, o pinheiro-bravo é uma resinosa. As resinas servem para cicatrizar as feridas da planta. A série “Terra Verde” confronta-nos com imagens viscerais, de interiores de pinheiros-bravos em mutação, com imagens de corpos feridos que aguardam pela resina humana para se regenerarem.
O pinheiro-bravo tem floração monóica, ou seja, as flores masculinas e femininas estão reunidas num mesmo pé. Nem sempre a Humanidade tem tratado as questões de género com a mesma equidade com que o pinheiro faz. A série “Chrysallis” leva Rosa Nunes a abordar de forma performática a questão de género. Desenha e materializa através de gesso um vestido/corpete que será objecto exposto/instalado em diversos não-lugares. É um vestido abandonado pelo corpo, pela matéria, pelos despojos do Eu e, principalmente, por todos aqueles que silenciam a dor e o sofrimento gerados pela dicotomia feminino/masculino. Rosa Nunes reúne em imagens reflexivas, um corpo feminino ausente em matéria aguardando de forma firme e bem alicerçada o regresso do Eu libertado.
A alicerçagem das nossas cidades é feita por anónimos. O alicerce é o conjunto de elementos estruturais que sustentam a edificação, transferindo os esforços na estrutura para o solo. Estrutura, suporte, assento, eixo, firmamento. A série “Z=37,48” reflecte sobre o trabalho silencioso daqueles que erguem cidades, países, mundos em autêntico mutismo social. Assim como todos aqueles que fazem o pão que comemos diariamente, ou aqueles que nos transportam de casa para o trabalho e do trabalho para casa nos transportes públicos. Juntos, alicerçam um sistema operacional de forma silenciosa onde apenas as máquinas falam. Apenas ouvimos o ruído dos carris onde os comboios circulam ou o das betoneiras que fabricam o betão. O solo está impregnado de esforço humano silenciado.
“Convite para Jantar” é o mais recente trabalho fotográfico de Rosa Nunes. São imagens que respiram de forma individual, em díptico e em tríptico. A representação de tempos idos - que tem como base de trabalho segmentos do painel dos Santos Mártires de Marrocos integrado no retábulo quinhentista da igreja do Convento de Jesus, em Setúbal - dialoga com os tempos agora vividos. Os seguidores de São Francisco assumiram a tarefa de conversão do Norte de África, onde foram autorizados a fundar os primeiros mosteiros em solo muçulmano. As Cruzadas organizadas à Terra Santa pelos cristãos europeus, entre 1096 e 1270, realçavam a necessidade de prosseguir com a evangelização nos territórios onde imperava a religião de Maomé. Num período de expansão do Cristianismo, estes cinco frades menores assentiram a tortura e confirmaram com sangue a sua fé em Jesus Cristo. Depois de muito padecerem, sem nunca abandonarem o seu propósito de evangelização, acabaram por morrer decapitados. Miramolim, o chefe dos crentes entre os muçulmanos, tomando da sua cimitarra (espada de lâmina curva) cortou-lhes a cabeça pelo meio da testa.
Actos destes continuam a ocorrer em todo o mundo, em díptico, em tríptico. Enquanto enviamos uma mensagem por telemóvel ou enquanto preparamos de forma esmerada a mesa para o jantar. A faca alinhada, o guardanapo imaculado, o corte que se espera. O corte sobre o corte que alguém de forma silenciosa fez no animal que vamos comer. A nossa vivência é sempre acompanhada por realidades paralelas, cortes transversais, eixos tangenciais. Rosa Nunes convida-nos para jantar.
“Nem só de pão viverá o Homem”. (Mateus 4:4)
Cláudia Camacho, Directora da antiframe